O desgraçado do eletricista português que o Estado abandonou nas prisões de Oman e que ajudamos a libertar continua a aguardar uma decisão judicial.
Depois da queda da política o coice do mau funcionamento dos tribunais.
E tudo o mais é folclore...
DA DENEGAÇÃO
DE PROTECÇÃO JURÍDICA
AOS
PORTUGUESES PRESOS NO ESTRANGEIRO
O caso do
cidadão português preso no Sultanato de Omã teve o mérito de clarificar uma
questão relativamente à qual o Ministério dos Negócios Estrangeiros mantém, há
alguns anos, uma posição ambígua: a de saber se os portugueses que precisem se
apoio jurídico no estrangeiro têm ou não o direito de exigir que o Estado lhe
preste esse apoio.
Desta
vez, a resposta foi peremptória: o Estado não contrata advogados para prestar
assistência aos cidadãos portugueses presos no estrangeiro nem se dispõe a
pagar ou a garantir o pagamento dos seus honorários, na hipótese de os mesmos
serem contratados pelos próprios.
A
posição do MNE é radical, peremptória e não admite excepções, tudo no pressuposto
de que o Estado não está obrigado a uma tal assistência aos seus cidadãos que
dela careçam no estrangeiro.
À
primeira vista trata-se, apenas de uma atitude chocante, pois que é da natureza
das coisas que as dificuldades de um qualquer cidadão são muito maiores fora da
sua terra do que nela e porque está generalizada na sociedade a ideia (agora
absolutamente falseada) de que um português no estrangeiro goza da protecção do
seu próprio Estado como dos demais vinte e quatro da União.
Mas
o essencial da questão está em saber se a atitude é legal ou ilegal.
Adianto,
desde já, que em minha opinião tal postura é absolutamente ilegal.
Dispõe
o artº 14º da Constituição da República (CRP) que «os cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no estrangeiro
gozam da protecção do Estado para o exercício dos direitos».
O artº 20º estabelece, de forma
clara e inequívoca que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a
justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (nº 1) e que «todos têm direito, nos termos da lei, à
informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se
acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.» (nº 2).
Estamos
perante garantias instituídas no quadro dos direitos fundamentais, sendo estes
normativos de aplicação imediata e vinculadores de todas as entidades públicas
e privadas.
A
norma do artº 20º é, de outro lado, um decalque de normas de conteúdo idêntico constantes
nas grandes cartas de direitos a que Portugal está vinculado, nomeadamente a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem.
A
DUDH estabelece no seu artº 11º que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso
presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no
decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa
lhe sejam asseguradas.».
O
artº 6º, 3 al. c) da CEDH determina que entre os direitos mínimos de qualquer
acusado o de se «defender a si próprio
ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para
remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor
oficioso».
É
certo que as normas quadro da União Europeia no que se refere à assistência
consular em matéria de apoio jurídico são extremamente claras no sentido de que
um Estado só é obrigado a pagar despesas inerentes à assistência a cidadão de
outro Estado, se o respectivo Ministério dos Negócios Estrangeiros o autorizar.[1]
Esta
instrução não pode, porém, servir para justificar a recusa de protecção do
Estado aos seus nacionais, garantida pela Constituição e pela lei ordinária.
O
Regulamento Consular, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
381/97 de 30 de Dezembro, afirmando , logo no seu preâmbulo uma vocação de
melhor defesa dos portugueses no estrangeiro, assume, de forma muito clara
obrigação de protecção constitucionalmente garantida nos termos atrás
referidos.
Logo
no artº 2º estabelece esse diploma como constituindo atribuições consulares «a
protecção dos direitos e dos legítimos interesses das pessoas singulares e
colectivas portuguesas». O artº 40º, sob a epígrafe de protecção consular,
determina que «os postos e as
secções consulares prestam a assistência necessária e possível às pessoas
singulares e colectivas portuguesas no estrangeiro, nos termos das leis
nacionais e estrangeiras em vigor».
A alínea a) dessa disposição é
claríssima, ao referir como ponto primeiro da protecção consular a «prestação de socorros a portugueses em
dificuldade, como nos casos de prisão ou de detenção, prestando-lhes
assistência, visitando-os, informando-os dos seus direitos e sustentando-os nas
suas pretensões justas».
A assistência necessária a um preso
é, antes de tudo, a assistência jurídica por advogado e essa só é possível em
países estrangeiros por via da contratação de advogados que possam exercer
nesses países.
A lei condiciona a assistência à
necessidade e à possibilidade, sendo certo que a necessidade de assistência de
advogado em situações de prisão é inquestionável e que a possibilidade é,
normalmente, comum.
Para além da disposição da alínea a)
do referido artº 40º, a alínea g) obriga o Estado a prestar «apoio social, jurídico ou administrativo possível e
adequado, de modo a garantir a defesa e a protecção dos direitos dos
portugueses». Também aqui se condiciona o socorro à possibilidade e à
adequação, dependendo uma da existência de meios disponíveis e outra de a
escolha dos meios ser a mais adequada à protecção dos referidos direitos.
Ora, na generalidade das situações
de carência de assistência jurídica é possível contratar um advogado e esse é o
meio adequado para prestar assistência a um cidadão que seja preso.
Esta obrigação do Estado não é uma
obrigação sem contrapartida.
Estabelece o artº 41º,1 do mesmo
Regulamento Consular o seguinte: «Os
portugueses socorridos no estrangeiro pelos postos e pelas secções consulares
que tiverem meios para restituir ao Estado as quantias com eles gastas em
socorros deverão assumir, em declaração escrita para o efeito, o compromisso do
respectivo reembolso».
O número 3 da mesma disposição confere a essa declaração a
força de título executivo, que permite ao Estado pagar-se, na hipótese de o
socorrido ter bens, por via da execução do seu património.
Consideramos que o Estado fica
desonerado da obrigação de prestar a assistência adequada aos cidadãos
portugueses presos no estrangeiro se os mesmos se recusarem a assinar a
compromisso atrás referido. Mas parece-nos inequívoco, à luz das citadas
disposições legais, que a omissão de auxílio, nomeadamente no quadro de
inequívoca necessidade de apoio jurídico, é absolutamente ilegal e constitui o
Estado e os responsáveis pela recusa de socorro na obrigação de indemnizar.
O caso do português preso no
Sultanato de Omã é exemplar.
Trata-se de um cidadão a quem, em
primeiro lugar, foi negado pelo Estado português o direito à informação sobre a
pendência de um mandado de captura internacional, quando embarcou para a Arábia
Saudita.
As autoridades portuguesas
entregaram-no, deliberadamente, a um terceiro Estado quando deveriam ter
cumprido o mandado, dando-lhe a oportunidade de se defender em Portugal e de,
por via da prova produzida nos tribunais portugueses, esclarecer o imbrógio
omanita, em termos que conduzissem à revisão da sentença ali proferida sem que
o cidadão tivesse que suportar a prisão para o esclarecimento de tal imbróglio.
Em segundo lugar, foi-lhe negada
assistência jurídica na Arábia Saudita, onde, ao abrigo dos dispositivos
processuais locais reguladores da
cooperação judiciária internacional, teria sido possível evitar a extradição e
questionar a decisão omanita por via de produção de prova no processo de
extradição.
Em terceiro lugar, foi-lhe negada
assistência jurídica no Sultanato de Omã, onde, se não for assistido por um
advogado e não adoptar os procedimentos judiciais adequados à produção de prova
nos prazos processuais adequados, verá, inevitavelmente confirmada a pena que
lhe foi aplicada, quando as próprias autoridades portuguesas parecem
convencidas de que estamos, de facto perante um equívoco.
E tudo isto ocorre quando há
conhecimento de que este cidadão, não tendo dinheiro, até tem património
suficiente para garantir os custos do socorro.
Se fosse pessoa destituída de
posses, nem por isso estava o Estado desobrigado de lhe dar protecção para o
exercício dos seus direitos, como é imposto pelo artº 14º da Constituição.
Entendimento diverso, quando temos
em Portugal uma lei de apoio
judiciário que considera assenta o que tem de mais essencial
no patrocínio por advogado em processo penal, conduzir-nos-ia a uma violação
brutal do princípio da igualdade, constitucionalmente garantido.
Miguel
Reis
[1] DECISÃO DOS
REPRESENTANTES DOS GOVERNOS DOS ESTADOS-MEMBROS, REUNIDOS NO CONSELHO de 19 de
Dezembro de 1995 relativa à protecção dos cidadãos da União Europeia pelas
representações diplomáticas e consulares (95/553/CE)
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