terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Portugal deveria valorizar a sua Diáspora...

Não sabemos – ninguém sabe – quantos Portugueses somos em todo o Mundo, mas somos muito mais  do que os que vivem permanentemente em Portugal[1].
diáspora de um povo só existe, aliás, quando corresponde a um dispersão em massa, distinguindo-se do fenómeno individualístico da deslocalização.
diáspora é, também, por definição, uma dispersão de um povo por várias áreas de acolhimento distintas.
Nós, os Portugueses, estamos em todo o Mundo, mesmo que encobertos por outra identidade, como nos habituamos a fazer durante séculos.
Foi sempre assim, desde que a palavra grega foi usada com esta propriedade, referindo-se à diáspora do povo hebreu desde a Babilónia, no século VI a.C e, especialmente, depois da destruição de Jerusalém (70 d.C).
A primeira grande diáspora portuguesa é que está associada aos Descobrimentos.
Não terá sido por acaso que dois dos nosso mais importantes descobridores, Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral tinham profundas ligações com a judiaria, que começara a ser perseguida em Portugal, pouco antes das suas grandes aventuras (1492).
Gama aprendeu matemática com Abraão Zacuto, o grande geógrafo das descobertas do Século XV.
Cabral era, ele próprio, oriundo de Belmonte, um dos mais importantes centros judaicos portugueses, especialmente após a perseguição aos judeus espanhóis pelos Reis Católicos de Espanha.
Os Descobrimentos foram, em boa medida, uma diáspora de cristãos novos, encobertos pela cruz de Cristo e por um slogan – levar a fé de Cristo até ao fim do Mundo, como forma mais pragmática de fugir à Inquisição.
 Mas muitos outros fugiram e se dispersaram por todo o Mundo.
Relevo especial tiveram os que partiram para a Holanda e aí se organizaram para a experiência  da Nova Amsterdão do Nordeste Brasileiro (Natal)  e, depois, para fundação de Nova Iorque, a segunda Nova Amsterdão.
A palavra diáspora foi, desde sempre, associada a uma maldição. “Serás disperso por todos os reinos da terra” – como vinha da Bíblia.
 Stuart Hall[2] estudou a temática dos síndromes da diáspora, tendo  revelado o seguinte entendimento: “O conceito fechado de diáspora apoia-se sobre uma conceção binária de diferença. Assenta na construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um “outro” e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora.”
E acrescenta:
 As configurações sincretizadas da identidade cultural requerem a noção derridiana[3] de  différance, uma diferença que não funciona através dos binarismos, fronteiras veladas que separam finalmente, mas são também places de passage e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim.”
Ao conceito de diáspora esteve sempre associada a lógica dicotómica do Bem e do Mal, da Sorte e da Desgraça, valendo o primeiro termo para a metrópole (Terra Prometida) e  o segundo para os lugares dos párias, dos expulsos ou repelidos pela sociedade.
Miguel Torga, que nasceu em São Martinho de Anta e emigrou para o Brasil, aos 13 anos, para trabalhar na fazenda de um tipo como capinador de café, vaqueiro e caçador de cobras, deixou-nos uma obra repleta de imagens desse sofrimento que marca os cidadãos de povos em diáspora.
Mas apontou caminhos para novos equilíbrios, superadores da lógica colonial que marcava a diáspora do seu tempo, o tempo em que integrou a colónia portuguesa do Brasil.
Escreveu ele:
Creio que nunca te fiz uma confidência que respeitarás: o Rio é o meu S. Martinho de Anta da outra margem. O Pão de Açúcar que o assinala foi o negrilho de pedra que na infância ali me recebeu. De tal modo lhes quero e me sinto bem naquelas ruas, que uma igrejinha barroca interrompe ou um penedo ruraliza, que saltei na praça Mauá como se me apeasse no Eirô que me viu nascer.”
Mas logo após esta ilusão vêm o lancinante mal da lonjura e o trágico dilema dumainsatisfação agónica que resulta dum desejo de ficar e dum desejo de regressar.
Porém – anota Torga –  “regressar é despertar do sonho, é voltar as costas ao Sésamo real; ficar é prolongar o martírio”, o que deixa um homem, desde a primeira hora“fendido ao meio, fraturado como um cristal agredido por um golpe de vento cruel”.
Nos emigrantes – que é o que  agora se chama aos da diáspora – há “qualquer coisa de estilhaçado que grita pela unidade, e que não pode, por mais que queira, encontrar a paz dum só lar, dum só gosto, duma só enxada”.
Com esse sentimento, escreveu Torga:
“Confundo no mesmo espanto a Ursa Maior e o Cruzeiro do Sul, a flor do ipé e a do rosmaninho, a água do Doiro e a do Paraíba. Misturo tudo. E esse dualismo interior mortifica-me o coração. Torna-me inseguro e vulnerável. A minha unidade telúrica desintegrou-se. E convivem na mesma carcaça dois seres opostos. Um, europeu, de medidas greco-latinas; outro, americano, anárquico e transbordante.
Para concluir que esta dualidade o levava a “gemer por Portugal no Brasil, e pelo Brasil em Portugal”, a “ougar num por alheiras, e no outro por feijão preto”, a “trazer o corpo e o espírito neste vaivém de grávida com desejos”.
 Depois da diáspora dos Descobrimentos, que semeou Portugueses por todo o Mundo, períodos houve em que a Pátria lusa foi muito áspera com os seus filhos, expulsando-os de casa, fora de qualquer empresa ou aventura, como se ali não tivessem lugar.
Ao mesmo tempo que criou dificuldades para que os Portugueses pudessem deslocar-se para  a colónias da África e da Ásia, o país criou, em diversas épocas, condições que forçavam os que quisessem ter melhor vida a emigrar,  em condições em que era praticamente imprevisível o regresso.
A primeira metade do Século XX foi marcada por  grandes vagas de emigração de portugueses para o Brasil e os Estados Unidos e Austrália.
Nos anos 60 e 70  emigraram centenas de milhar de Portugueses para França e continuou a emigração para os Estados Unidos e para o Canadá. Paris já foi a maior cidade portuguesa, antes de os Portugueses terem sido dissolvidos no caldo francês. Já antes tinham sido ali dissolvidos outros Portugueses como os Mendes da França, a quem os franceses batizaram de Mendés-France.
Com a descolonização, em 1975, muitos Portugueses das antigas colónias africanas regressaram a Portugal e outros dispersaram-se por todo o Mundo.
A partir de 2011 desenvolveu-se uma onda migratória que tem dispersados jovens portugueses, muito deles especialmente qualificados,  por todo o Globo.
Calcula-se que tenham emigrado entre 150 e 250 mil Portugueses por ano, nos últimos 3 anos, mas não há números minimamente rigorosos sobre essa realidade.
 Ao contrário do que aconteceu nos anos 60 do século passado, em que a emigração não autorizada era punida criminalmente, não só não há hoje nenhum controlo, como a emigração é aconselhada pelo Governo português.
Podemos dizer, com propriedade, que, pela primeira vez na História de Portugal, há uma politica pública que incentiva os Portugueses a sair do País, sem nenhum projeto na mão, à sorte, como se uma qualquer mão invisível operasse no sentido de que ele ficasse livre e devoluto para venda a terceiros[4].
Bem mais grave do que esta espécie de desígnio de despejo do País – sem dúvida adequada à desvalorização dos ativos portugueses, em que parece assentar a nova lógica do aumento de competitividade – são preocupantes os sinais de um desejo oculto de destruição de um Povo, para o reduzir à ínfima espécie, que é a expressão residual da população idosa que habita no espaço português.
O apelo de regresso  à Terra Prometida – que marcou a crise financeira do início da década de 70  – foi  agora substituído  pelo aliciamento de chineses, árabes e russos, a troco de um visto a que chamam Gold, que lhes dá o direito de residir no pais e de circular no Espaço Schengen, a troco de um investimento de 500 mil euros.
Segundo foi revelado, há dias, pelo vice-primeiro-ministro Paulo Portas, foram emitidos 477 vistos, a que corresponderam investimentos de cerca de 306 milhões de euros.
Não temos nada contra chineses, russos ou árabes com dinheiro. Mas consideramos que o resultado é um valor  manifestamente insignificante e de proveito mais do que duvidoso.
Só as remessas dos emigrantes portugueses ultrapassam os 2.500 milhões de euros anuais e não representam, nem de longe nem de perto os valores reais que os Portugueses da diáspora aportam ao País.
Temos aconselhado empresários e profissionais liberais portugueses, residentes no estrangeiro, a faturar os seus serviços, prestados em todo o Mundo, através de entidades sedeadas em Portugal, pois que o Estado lhes garante a tributação  a uma taxa liberatória que se pode considerar razoável (25%).
Estes impostos, decorrentes de atividade desenvolvida no estrangeiro não são contabilizados como remessas de emigrantes, representando, porém, valores muito elevados.
Os valores do património imobiliário em Portugal atingiram níveis baixíssimos.
Se o Governo quisesse resolver, de forma rápida, uma boa parte dos problemas do setor imobiliário,  bastaria que incentivasse e facilitasse a aquisição de imóveis pelos Portugueses residentes no estrangeiro.
A isenção de IMT e de IMI, à semelhança do que ocorreu nos anos 80, e a recuperação da ideia de contas-poupança dos Portugueses da diáspora seria muito bem recebida em todas as comunidades espalhadas pelo Mundo e rejuvenesceria essa ideia de que continuamos a existir como Povo.
Do mesmo modo, seria bem vinda a total isenção de impostos sobre os juros de depósitos feitos pelos residentes no estrangeiro em bancos portugueses.
Nada perderia o Estado com tal isenção. E ficaria melhor na fotografia.
Infelizmente, o ano de 2013 foi um ano muito negativo para os Portugueses da Diáspora.
Salienta-se, de positivo, a publicação da Lei Orgânica nº 1/2013, de 29 de julho, que permite que seja concedida a nacionalidade portuguesa aos descendentes dos judeus sefarditas portugueses, perseguidos desde o Século XV, desde que comprovem a tradição de pertença a uma comunidade sefardita portuguesa.
O Regulamento da Nacionalidade Portuguesa deveria ter sido alterado até 29 de outubro de 2013, de forma a que a lei pudesse entrar em vigor, mas nada aconteceu, o que indicia que estamos perante uma mera manobra politica, para agradar o lobbyjudaico.
O que de mais negativo verificamos no ano de 2013 foi o acumular de manifestações de discriminação racial dos Portugueses da diáspora.
 Como é sabido, a nova conceção de discriminação racial não assenta em critérios de cor de pele, mas, essencialmente, em critérios de discriminação cultural, de preconceito[5].
Consideramos especialmente chocante a argumentação que tem vindo a aprofundar-se nos tribunais, no sentido de rejeitar a entrada na comunidade portuguesa dos familiares estrangeiros de cidadãos portugueses, desde que eles não tenham sido assimilados pela sociedade portuguesa, entendendo-se por sociedade portuguesa a que é constituída pelos Portugueses de Portugal.
Conhecemos casos de estrangeiros/as ilustres, casados com cidadãos portugueses  há mais de 3 anos, por vezes há décadas, pais e mães de nacionais portugueses, que são impedidos de adquirir a nacionalidade portuguesa apenas porque são estrangeiros e não se mostram assimilados pela comunidade portuguesa.
 As posições assumidas pelo Ministério Público e pelos tribunais relativamente a estes cidadãos são adequadas a que eles ou se divorciem dos cônjuges portugueses ou tudo façam para que as respetivas famílias cortem as suas relações com Portugal.
Nesse sentido me parece que  este fenómeno – injustificadamente silenciado em todo o espetro dos partidos parlamentares e pelo quase defunto Conselho das Comunidades Portuguesas – indicia o recrudescimento de uma tendência de marginalização dos Portugueses da diáspora, como se se pretendesse que eles desaparecessem ou se desligassem, definitivamente, de Portugal.
 No ano de 2013 foi especialmente chocante o aumento do número de ações propostas pelo Ministério Público contra a aquisição da nacionalidade portuguesa por crianças, filhas de Portugueses naturalizados, especialmente pessoas que adquiriram a nacionalidade por serem netos de nacionais portugueses.
A perseguição aos Portugueses da Índia continuou em 2013, como se ali se estivessem a fazer experiências a adotar noutras partes do Globo.
Em outubro foi posta a correr a notícia de que o governo português se preparava para alterar a Lei da Nacionalidade, de forma a excluir a possibilidade de os descendentes dos Portugueses da Índia continuarem a adquirir a nacionalidade portuguesa.
The Economic Times foi mesmo mais longe, afirmando que a Embaixada de Portugal em Nova Deli tinha aconselhado o governo a deixar de emitir passaportes para os Portugueses do antigo Estado da Índia.
Times of Índia deu noticia de que a mesma Embaixada tinha mesmo recomendado que deixasse de ser garantida a nacionalidade portuguesa aos descendentes desses Portugueses.
As noticias foram desmentidas no Heraldo, depois de termos denunciado o  seu conteúdo como uma inaceitável  postura de discriminação racial.
 Verdade é que nunca há fumo sem fogo.
Sobre a discriminação de que são vítimas os Portugueses da Índia, apresentei em 2010 uma queixa contra o Cônsul Geral de Portugal em Goa, por factos que reputo gravíssimos.
Entre esses factos relevo, especialmente, o de ter sido eu próprio impedido de entrar no Consulado Geral de Portugal em Goa, apesar de me ter identificado como advogado, inscrito na Ordem dos Advogados Portugueses.
Soube em 2013 que  o processo foi “abafado”, não tendo sido dado qualquer seguimento à queixa.
Haja ou não um plano para excluir os Portugueses da Índia de exercer os seus direitos,  por via de alterações legais, a verdade é que essa exclusão é feita já, de forma assumida, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Objetivamente, invocando até problemas de segurança interna, como se pudesse estar contra os próprios Portugueses, o MNE aceita, pacificamente, que o Consulado Geral de Portugal em Goa, não admita a entrada dos cidadãos portugueses nas suas instalações sem uma marcação prévia, não prevista em nenhuma lei.
Para pedir um cartão de cidadão o prazo para a simples marcação de data pode  ultrapassar os 60 dias.
Isto no tempo do Governo de Passos Coelho, que fez das permanências consulares um instrumento de propaganda e das máquinas para a recolha de dados um fabuloso negócio para os fornecedores.
 É absolutamente inaceitável que 13 anos sobre o início do Século XXI assistamos a uma tamanha barbárie.
Portugal, com uma população envelhecida, governada por geração leviana e incompetente, desaparecerá como Pais se destruir, como está a destruir o seu Povo.
Portugal só teria a ganhar se valorizasse a sua diáspora, em vez de continuar a discriminar os Portugueses, como ainda foi feito recentemente pelo Presidente da República[6].
É inaceitável a ideia de que há emigrantes Portugueses de luxo , 1ª e de 2ª e ainda mais essa outra de que a diáspora deve aproveitar-nos numa lógica utilitarista de rede de propaganda, mantendo-se os seus elementos à distância e fora dos projetos de investimento, como se os desejados fossem só os estrangeiros.
Só que não sabe o que é que ser emigrante é que não compreende a ofensa que essa lógica importa.
Portugal só teria a ganhar se, em vez de nos tratar como indesejados, apelasse aos Portugueses residentes no estrangeiro a investir no País e a aproveitar as suas estruturas para o transformar no País de Futuro.
São  Paulo, 31 de dezembro de 2013
Miguel Reis

Miguel Reis vive em São Paulo. A Miguel Reis & Associados – Sociedade de Advogados (Portugal) e a Miguel Reis Advogados Associados (Brasil) trabalham há mais de 20 anos na prestação de serviços jurídicos aos Portugueses da Diáspora. As sociedades recorrem support services, na área da gestão documental, em Newark e Goa

[1]  Há quem diga que somos 40 milhões os Portugueses e luso-descendentes até à terceira geração.
[2] HALL, Stuart.Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2008 p. 32-3.)
[3] JACQUES DERRIDA, Da linguagem à escritura, da escritura como transbordamento
[4] A primeira declaração nesse sentido foi difundida em 31 de outubro de 2011, pela agência Lusa que  emitiu uma notícia, citando o secretário de Estado do Desporto e da Juventude, Alexandre Mestre,  a afirmar que “se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras”.
Poucos dias depois, a 19 de novembro, afirmava o ministro Miguel Relvas, no Parlamento:
“Quem entende que tem condições para encontrar [oportunidades] fora do seu país, num prazo mais ou menos curto, sempre com a perspetiva de poder voltar, mas que pode fortalecer a sua formação, pode conhecer outras realidades culturais, [isso] é extraordinariamente positivo“, afirmou.
 “Nós temos hoje uma geração extraordinariamente bem preparada, na qual Portugal investiu muito. A nossa economia e a situação em que estamos não permitem a esses ativos fantásticos terem em Portugal hoje solução para a sua vida ativa. Procurar e desafiar a ambição é sempre extraordinariamente importante”. 
Em entrevista ao Correio da Manhã, em dezembro de 2011, afirmou Passos Coelho:
Angola, mas não só Angola, o Brasil também, tem uma grande necessidade ao nível do ensino básico e do ensino secundário de mão de obra qualificada e de professores.Sabemos que há muitos professores em Portugal que não têm nesta altura ocupação e o próprio sistema privado não consegue ter oferta para todos. Nos próximos anos haverá muita gente em Portugal que ou consegue nessa área fazer formação e estar disponível para outras áreas ou querendo-se manter, sobretudo como professores, podem olhar para todo o mercado de língua portuguesa e encontrar aí uma alternativa”.
[5] Nos termos da Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a expressão “discriminação racial” visa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferencia fundada na raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica,  que tenha como objetivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, económico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.
[6] Veja-se, a titulo de exemplo, a noticia publicada no site da Rádio Renascença

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Um alerta aos Portugueses da Diáspora

Artigo publicado no jornal Luso-Americano de Newark

O PRINCÍPIO DO FIM DOS TRIBUNAIS

Portugal é o país mais antigo da Europa e o que tinha, até ao presente, o sistema de justiça mais estabilizado.
            As nossas comarcas assentavam num edifício construído desde a Idade Média, em redor dos municípios que, por sua vez, agrupavam as freguesias. Depois da destruição da malha das freguesias, o governo tem em curso uma operação de destruição da organização comarcã.
            Estas mudanças têm um enorme impacto nas comunidades da Diáspora portuguesa, especialmente no que se refere os problemas da propriedade de imóveis.
            A ligação dos emigrantes à freguesia – e a memória de que determinada pessoa, de determinada família, tinha emigrado – evitou inúmeros casos de apropriação de imóveis dos que tiveram que procurar a sorte noutros países.
            Com a extinção de muitas das freguesias, assimiladas pelas vizinhas, perdeu-se essa memória relativamente aos bens dos que pertenciam às freguesias extintas.
            As relações de vizinhança ultrapassam as fronteiras, mas sempre em conexão com um ponto de origem que, no caso português, é, marcadamente, a freguesia; não o distrito ou o concelho.
            Serve isto para dizer que os emigrantes das freguesias extintas ficaram órfãos, porque as mesmas desapareceram. Os seus bens em Portugal serão, a breve prazo, reclassificados e integrados nas novas freguesias. Mas ninguém os relacionará com eles.
            Justifica isso, como elementar ato de prudência, que cada um procure conferir, ao menos de seis em seis meses, os registos relativos aos seus imóveis em Portugal, porque os riscos efetivos de perda dos mesmos são reais.
            Depois da reforma relativa aos municípios e às freguesias, está em curso uma profundíssima reforma judicial.
            Todos os concelhos de Portugal tinham um tribunal de comarca. A reforma atualmente em curso reduziu as comarcas para 23, fazendo-as corresponder a uma comarca por distrito ou região autónoma.
            Apesar de se prever a manutenção de secções ao nível dos concelhos, é evidente que a reforma aponta para o fim de uma lógica de justiça de proximidade, o que, desde logo, aumentará a dificuldade de acesso aos tribunais e encarecerá os custos da justiça.
            Pense no tribunal do seu concelho e imagine que ele desapareceu, passando a haver apenas um tribunal na sede do distrito. Será essa a nova realidade, com impactos que são, naturalmente, variáveis de caso para caso.
            Este quadro aconselha a que se tomem medidas que evitem a necessidade de recorrer aos tribunais,  porque os litígios passarão a ser mais caros  e porque a  produção da prova também passará a ser mais difícil, especialmente nos distritos em que seja maior a distância por relação à sede do tribunal.

            É evidente que não é possível fazer previsões e extrair conclusões antes que toda a reforma esteja concluída. Mas, como mais vale prevenir do que remediar, aqui fica o meu conselho no sentido de evitar sempre que possível o recurso aos tribunais.

domingo, 10 de novembro de 2013

Alguém quer discriminar os Portugueses da Índia, como se eles fossem menos que os da América, de Angola ou do Brasil

Alguns diplomatas portugueses não se deram bem com a reforma da Lei da Nacionalidade Portuguesa operada em 1981, que garantiu, de forma ampla, a possibilidade de os descendentes diretos de nacionais portugueses poderem ver atribuída a nacionalidade portuguesa.
Segundo noticias publicadas em dois prestigiados jornais indianos,  o The Economic Times a e o The Times of India, Embaixada  de Portugal em Nova Deli recomendou ao governo português que deixe de reconhecer a nacionalidade portuguesa aos cidadãos nascidos nos territórios de Goa, Damão e Diu, antes de os mesmos terem passado a integrar o território da República da India, em 1961.
Uma tal proposta é objetivamente discriminatória, porque Portugal reconhece o direito à nacionalidade portuguesa originária aos filhos de nacionais portugueses, nascidos no estrangeiro, sem nenhuma limitação.
Não há nenhuma razão para discriminar os que nasceram no Oriente em geral e na India em particular.
A única justificação plausível é a de alguém pretender criar dificuldades para, por essa via, catalizar um escandaloso negócio, desenvolvido, especialmente por procuradores ilícitos que negoceiam favores e valores para a atribuição de passaportes portugueses.
A nacionalidade portuguesa não pode ser um negócio, nem da India nem China. 
Tem que ser um exercício rigoroso de direitos, que não se compadece com ações verdadeiramente terroristas como as que estão por detrás destas noticias.
A jornalista Devika Sequeira, do Times of India, pediu o meu depoimento.
Reproduzo a entrevista:

Segundo alguns jornais indianos, a Embaixada de Portugal na Índia recomendou ao Governo Português que “deixe de conceder a nacionalidade portuguesa” às pessoas nascidas nos territórios de Goa, Damão e Diu antes de 20 de dezembro de 1961.
 Esta recomendação respeita a Constituição Portuguesa ?


Eu não acredito que algum diplomata português pudesse fazer uma recomendação desse tipo. Só posso encarar essa notícia como falsa. Se ela fosse verdadeira, eu defenderia que esse diplomata fosse, pura e simplesmente demitido, porque estaríamos perante um ignorante.
A chamada “questão da Índia” é das mais interessantes de toda a História de Portugal.
Muito mais do que uma questão política é uma questão afetiva. E isso teve uma enorme repercussão nas nossas leis. Nós, os Portugueses, somos os indianos da Europa. Somos caldeados com pimenta e vinho. E temos muito orgulho nisso.
Os “indianos” – como sempre chamamos aos portugueses de Goa, Damão e Diu – nunca foram indígenas. Sempre foram tão cidadãos de pleno direito, como os de Lisboa ou de Coimbra.
Em termos civilizacionais recebemos muito mais da Índia do que aquilo que demos.
Os cidadãos das colónias portuguesas da Índia nunca sofreram as limitações de cidadania sofridas pelos povos das outras colónias portuguesas.
Quando em 1975 se fechou o ciclo colonial, a lei conferiu aos descendentes dos cidadãos nascidos em Goa, Damão e Diu os mesmos direitos que têm os descendentes das pessoas nascidas em Portugal.
Essa situação está absolutamente estabilizada e só alguém com mentalidade xenófoba e racista pode pretender alterar essas leis 40 anos depois.
Não há nenhuma razão para discriminar negativamente os descendentes dos que nasceram em Goa, Damão e Diu por relação aos descendentes dos que nasceram em Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, Macau ou Timor. Ou por relação aos descendentes de portugueses nascidos no Brasil, nos Estados Unidos ou na Austrália.
Se uma medida deste tipo viesse a ser adotada estaríamos objetivamente perante uma violação grosseira do artº  13º,2 da Constituição, que estabelece que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
O que se pretenderia, segundo essa recomendação, seria vedar a um grupo de pessoas, as descendentes dos nascidos em Goa, Damão e Diu, direitos que são assegurados aos descendentes dos nascidos nas demais ex-colónias e, em geral, aos descendentes dos portugueses nascidos no estrangeiro.


Há um elemento racista nesta recomendação?

Não acredito que a recomendação exista. Mas se existir tenho que concluir que ela tem uma base racista.  Não ouvi nenhum diplomata, alguma vez, sustentar que deve ser recusado o acesso à nacionalidade portuguesa aos descendentes de portugueses nascidos nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Brasil, na França ou na Alemanha, só para dar alguns exemplos. Como não ouvi essa recomendação relativamente aos nascidos em Angola, a partir do momento em que Angola afirma prosperidade.



Diplomaticamente, como é que este assunto fica entre os dois países: Índia e Portugal

Como já disse, penso que isto é um “no case”. Não acredito que algum diplomata português ousasse ter uma posição como a referida, que ofende a dignidade das pessoas visadas e reabre uma guerra estúpida e inútil.
É óbvio que falar-se disto a partir da Índia justifica, no mínimo, atento o prestígio dos jornais que publicaram as noticias, que o Governo indiano chame o embaixador português e lhe peça explicações.
Apesar da Índia não aceitar a dupla nacionalidade, há dezenas de milhares de PIO (persons of indian origin) no território da India, que têm direitos e merecem explicações.
A República a Índia sempre tratou a chamada questão de Goa com uma grande sabedoria e sem radicalismos. Os indianos têm-se afirmado muito mais sábios do que os portugueses.
No que se refere à questão da nacionalidade, conferiram a nacionalidade indiana a todos os cidadãos nascidos naqueles territórios, logo após a libertação. Mas nunca impuseram a perda da nacionalidade portuguesa a nenhum desses cidadãos.
Quem quiser afirmar-se português no território da Índia tem que aceitar a renuncia à nacionalidade portuguesa, sem prejuízo de poder ter o estatuto de PIO. Mas o mesmo acontece, por outra via, num certo sentido aos indianos que também sejam portugueses, no território português. Em Portugal eles são apenas portugueses e na União Europeia são apenas europeus.
Tanto Portugal como a Índia ganham com a dupla nacionalidade dos seus cidadãos. Essa qualidade é a melhor fórmula que temos para celebrar relações com mais de 500 anos.
Por isso me parece que a recomendação referida pelos jornais, a existir é uma manifestação de estupidez, absolutamente inaceitável.
Os senhores diplomatas deveriam era preocupar-se com as falsificações de documentos e a corrupção, que é evidente e notória.

Miguel Reis