terça-feira, 17 de julho de 2012

Asneiras consulares


COMENTÁRIOS AO SITE DO
CONSULADO GERAL DE PORTUGAL NO
RIO DE JANEIRO


O site do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro é um repositório de asneiras técnico-juridicas, que merecem um breve  comentário.
Lê-se, logo a abrir, sob a epigrafe de “atualização do estado civil” esta autêntica preciosidade:

Os casamentos ou óbitos dos portugueses, mesmo os ocorridos no estrangeiro, têm por lei, de ser comunicados (transcritos) ao registo civil português.

Essas transcrições são averbadas nos respectivos assentos de nascimento, ou casamento, do nacional português(a).

As referidas transcrições são indispensáveis para os filhos obterem a nacionalidade portuguesa e documentos como, passaporte, cartão de cidadão, etc., possam ser emitidos com o estado civil correcto e com as eventuais alterações de nome por efeito do casamento.

Porém, os consulados portugueses não podem efectuar a averbação dos divórcios e separações decretados por sentença estrangeira. Esta averbação terá de ser promovida pela via judicial, em Portugal. (...)

Atenção: os interessados na averbação de divórcio ou separação terão de solicitar primeiro a transcrição do respectivo casamento no consulado.

A transcrição deve ser requerida pelos nubentes (se estiverem vivos).
Neste caso podem solicitar ao mesmo tempo o respectivo Cartão de Cidadão;
Caso os nubentes sejam falecidos, a transcrição pode ser requerida por um parente próximo (filho ou neto).

Atenção: Em casamento realizado entre portugueses no exterior prevalece o regime imperativo da separação de bens. Porém, se os nubentes optarem por outro regime de bens, deverão proceder antes ao processo preliminar de publicações para casamento.

Não se pode falar, nem com rigor nem com propriedade, de “atualização do estado civil”.
O estado civil é o que é, em função dos ordenamentos jurídicos que o regulam; e, por isso mesmo, nunca está desatualizado.
O que pode estar desatualizado é o registo civil que, segundo a lei portuguesa portuguesa é obrigatório relativamente aos seguintes factos:
(...)
a) O nascimento;
b) A filiação;
c) A adopção;
d) O casamento;
e) As convenções antenupciais e as alterações do regime de bens convencionado ou legalmente fixado;
f) A regulação do exercício do poder paternal, sua alteração e cessação;
g) A inibição ou suspensão do exercício do poder paternal e as providências limitativas desse poder;
h) A interdição e inabilitação definitivas, a tutela de menores ou interditos, a administração de bens de menores e a curadoria de inabilitados;
i) O apadrinhamento civil e a sua revogação;
j) A curadoria provisória ou definitiva de ausentes e a morte presumida;
 l) A declaração de insolvência, o indeferimento do respectivo pedido, nos casos de designação prévia de administrador judicial provisório, e o encerramento do processo de insolvência;
 m) A nomeação e cessação de funções do administrador judicial e do administrador judicial provisório da insolvência, a atribuição ao devedor da administração da massa insolvente, assim como a proibição da prática de certos actos sem o consentimento do administrador da insolvência e a cessação dessa administração;
 n) A inabilitação e a inibição do insolvente para o exercício do comércio e de determinados cargos;
 o) A exoneração do passivo restante, assim como o início e cessação antecipada do respectivo procedimento e a revogação da exoneração;
p) O óbito;
 q) Os que determinem a modificação ou extinção de qualquer dos factos indicados e os que decorram de imposição legal.Description: er jurisprudência
            É o que dispõe o artº 1º, 1 do Código do Registo Civil, que no seu nº 2 determina que  “os factos respeitantes a estrangeiros só estão sujeitos a registo obrigatório quando ocorram em território português.”
            Relativamente aos portugueses – ainda que plurinacionais e não residentes em Portugal – é obrigatório o registo de todos os atos acima identificados, podendo o registo ser requerido por qualquer pessoa que tenha nisso interesse legítimo.
            Não é correto falar de atualização ou desatualização do estado civil.
            Do que deveria tratar-se – e nisso os consulados deveriam ter uma função  pedagógica – é de difundir a ideia de que há um conjunto de atos que estão obrigatoriamente sujeitos a registo civil em Portugal, sob pena de não se poder fazer prova dos mesmos.
Dispõe, a propósito o artigo 2.º do Código do Registo Civil que, salvo disposição legal em contrário, os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados, determinando o artº 3º que aprova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de Estado e nas acções de registo.
Os factos registados não podem ser impugnados em juízo sem que seja pedido o cancelamento ou a rectificação dos registos correspondentes (artº 3º) e, em coerência com esse normativo,  a prova dos factos sujeitos a registo só pode ser feita pelos meios previstos neste Código.
Nos termos das normas de direito internacional privado do direito português é aplicável a lex cives  (a lei portuguesa, relativamente aos portugueses) na generalidade das questões de família e das questões sucessórias, ao contrário de quadros idênticos do direito brasileiro, em que releva a lex domicili.
Reduzir toda essa problemática à questão da necessidade para os filhos obterem a nacionalidade portuguesa e documentos como, passaporte, cartão de cidadão, etc.  é uma enormíssima asneira.
A falta do registo de factos sujeitos a registo obrigatório têm consequências na esfera juridica da pessoa a que tal falta se refere, faltas essas que podem ser importantes para o estabelecimento de presunções, mas que não são, de todo, determinantes de outras consequências não previstas na lei.
A título de mero exemplo, a falta de transcrição de um casamento de português celebrado no estrangeiro não prejudica o estabelecimento da filiação, implicando apenas a ineficácia de tal casamento na ordem jurídica portuguesa, sem prejuizo da obrigação do processamento de tal registo.
O que o consulado deveria promover era o aconselhamento dos nacionais portugueses para o processamento do registo dos factos sujeitos a registo obrigatório.
Em chamada de atenção diz o Consulado de Portugal no Rio de Janeiro que os interessados na averbação de divórcio ou separação terão de solicitar primeiro a transcrição do respectivo casamento no consulado.
Estamos, manifestamente, perante uma gostosa anedota sobre portugueses.
Não é preciso ser jurista para compreender que não se pode pretender o registo de um divórcio ou de uma separação judicial se o casamento não foi registado.
Logo a seguir, surgem duas terriveis boutades:

“A transcrição deve ser requerida pelos nubentes (se estiverem vivos).
Neste caso podem solicitar ao mesmo tempo o respectivo Cartão de Cidadão;
Caso os nubentes sejam falecidos, a transcrição pode ser requerida por um parente próximo (filho ou neto).”

Para além de se misturarem alhos com bugalhos, parece-nos que a informação prestada aos utentes é manifestamente errada.
Não se alcança como é possivel pedir, ao mesmo tempo, proceder ao pedido do registo do casamento celebrado no estrangeiro e fazer declaração para pedido de cartão de cidadão, contendo, necessariamente a afirmação de factos que não pode invocar-se, qua tale, nos termos das referidas disposições do Código do Registo Civil.
Estamos, a um tempo, perante o total abandalhamento do rigor jurídico e o tratamento dos residentes no estrangeiro como cidadãos de segunda categoria, a quem se não exige o mesmo que aos da metrópole.
De outro lado, não tem nenhum fundamento jurídico a afirmação de que a transcrição do casamento celebrado no estrangeiro só pode ser solicitada pelos nubentes, se forem vivos, ou por  filhos ou netos se os nubentes forem falecidos.
A transcrição pode ser requerida por qualquer pessoa que tenha interesse legítimo no registo, nomeadamente, v.g., por um credor que pretenda, obter com o registo condições para a execução dos bens de qualquer dos cônjuges e, para isso, precise de demonstrar que há um casamento com eficácia em Portugal.
No caso de os cônjuges serem vivos, nada obsta  a que os filhos ou os netos requeiram a transcrição do casamento, a fim de beneficiarem dos efeitos de tal registo.
Afirma-se, ainda, no referido site que “em casamento realizado entre portugueses no exterior prevalece o regime imperativo da separação de bens. Porém, se os nubentes optarem por outro regime de bens, deverão proceder antes ao processo preliminar de publicações para casamento.”
Estamos, também aqui, perante uma asneira grosseira.
Ao casamento celebrado por portugueses no estrangeiro aplica-se a lei do local da celebração, em conformidade com o disposto no artº 50º e seguintes do Código Civil português.
No que se refere ao regime de bens, rege, no essencial o diposto no artº 53º do Código Civil, que dispõe o seguinte:

1 - A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento.
2 - Não tendo os nubentes a mesma nacionalidade é aplicável a lei da sua residência habitual comum à data do casamento e, se esta faltar também, a lei da primeira residência conjugal.
3 - Se for estrangeira a lei aplicável e um dos nubentes tiver a sua residência habitual em território português, pode ser convencionado um dos regimes admitidos neste código.

Os quadros mais comuns que encontramos no Brasil são os seguintes:

a)                     Casamento de pessoas que têm a nacionalidade brasileira comum, ainda que um ou ambos sejam também portugueses.
b)                    Casamento de conjuge que é nacional português com cônjuge que é nacional brasileiro, ou que é estrangeiro residente no Brasil.
            Tanto num quadro como no outro se aplica ao regime de bens a lei brasileira, nomeadamente no que ser refere ao regime supletivo de bens, que era o da comunhão geral de bens até à entrada em vigor do Código Civil de 2002 e passou a ser o da comunhão parcial de bens, depois da entrada em vigor deste código.
            Motivo de preocupação é o facto de o Consulado de Portugal no Rio afirmar no seu site que em casamento realizado entre portugueses no exterior prevalece o regime imperativo da separação de bens.
            Seguramente que, em coerência com este entendimento. os funcionários dete consulado estarão a processar registos de casamento celebrados em conformidade com a legislação brasileira, alterando o regime de bens, por relação àquele que rege esses casamentos, o que, para além de ser uma asneira grosseira, prejudica, de forma que pode ser gravíssima, os direitos pessoais dos cônjuges e dos seus sucessores e lança a completa insegurança no tráfico jurídico, pelas implicações que esta questão tem nas relações patrimoniais.
            Agrava o problema o facto de terem desaparecido os livros dos registo civil e de o registo civil português ter passado a ser processado numa base de dados que é praticamente incontrolável e inacessivel, permitindo, por natureza, toda a qualidade de fraudes.
            A informatização do registo civil, tal como foi feita pelas autoridades portuguesas,  deixou de permitir consultas de sequências de registos.
            Deixou de ser possivel verificar os registos que foram feitos, em qualquer repartição durante, por exemplo, determinado mês do ano.
            Antes da reforma era possivel a qualquer pessoa – porque o registo civil tem natureza pública – consultar os livros de registo e verificar, v.g., se os registos de casamento de portugueses celebrados no Rio de Janeiro tinha passado, todos, a ser feitos sob o regime da separação de bens.
Isso deixou, agora de ser possivel, podendo acontecer que o Consulado tenha implementado a asneira anunciada no seu site sem que alguém se aperceba disso.


16/07/2012

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